Por Gilberto Amorim:
“A escuta ativa e sem julgamentos, o interesse genuíno em compreender e auxiliar, o exercício constante da empatia: transformar o consultório médico numa zona livre de culpas e plena de acolhimento e confiança é um desafio. A compaixão, não por acaso, está inserida entre os dez princípios da Slow Medicine, e talvez seja o princípio mais essencial para que todos os outros possam ser também adotados.” (Ana Coradazzi)
Quem de nós nunca fez uma anamnese sobre hábitos de vida como carga tabágica, consumo de álcool, ganho de peso ou sobre glicose e colesterol altos e não incorreu no seríssimo risco de fazer aflorar o sentimento de culpa (muitas vezes já existente, já arraigado, um verdadeiro fardo que o paciente carrega com dificuldade)? Mesmo que não julguemos, mesmo que não sejamos o gatilho para este sentimento de culpa, o clima pode ficar tenso imediatamente. Mas frequentemente o fazemos. Eu mesmo, que sou oncologista, não raro queria saber por que a paciente deixou de fazer uma mamografia nos últimos anos, ou por qual motivo nunca fez, por que não procurou o médico antes num caso de câncer mais avançado…e lá está aquela mensagem nada subliminar de cobrança para aquela atitude (ou falta de)…
Devemos calibrar o discurso e nossas atitudes o tempo todo e evitar essas cobranças, piorar o senso de culpa. Aliás costumo dizer que culpa é uma palavra que devemos tirar de nossos dicionários pessoais. São escolhas, e devemos olhar para frente e não ficarmos olhando para trás o tempo todo…o que eu devo fazer para ajudar este paciente daqui por diante? Essa é a pergunta. Dar bronca, esculachar o paciente nunca funciona…será que algum paciente ainda “funciona” com estas atitudes? Será que conseguimos cativar alguém deste jeito? Provavelmente não.
Alguns pacientes esperam (ou estavam acostumados a) ser repreendidos pelo médico, recebendo alertas e ameaças sobre a sua saúde futura, e já vão na defensiva quanto o “interrogatório começa” e acabam…mentindo! Alguns até se surpreendem com uma postura empática…”ué, não vou receber bronca não?”
Na pandemia de COVID19 frequentemente os pacientes têm se alimentado pior, estão mais sedentários pelo confinamento, fechamento de clubes e academias, estão mais ansiosos, muitas vezes deprimidos e com sofrimento intenso, comendo fora de hora. O que pode ser mais terapêutico, ou agregador? Esculachar o paciente e cobrar esses “erros”? Ou entender que pode ter sido uma fase, que está sendo difícil e perguntar o que está fazendo ou pensando em fazer para melhorar? Estamos fazendo o que é possível nestes tempos tão difíceis. Nós médicos precisamos entender isso. Outras vezes, descobrimos que os pacientes tomaram a medicação de maneira errada. Não seria melhor perguntar “o que posso fazer para ajudá-lo a tomar certinho daqui para frente?”
Voltando ao fumante e a inúmeras possibilidades onde isto se aplicaria: o Dr. Robin Taylor sugere já desde o início deixar claro que não vai apontar o dedo, dar bronca ou julgar ao perguntar sobre quantos cigarros fuma. Eu acrescentaria que esta é uma ótima abordagem sobre outras questões também. São perguntas relevantes, e podem ser feitas de várias maneiras, de forma que o paciente entenda que a informação CORRETA, sem mentiras, pode ajudá-lo. Preparar o paciente para uma conversa LIVRE DE CULPAS é fundamental para ganhar a confiança do mesmo e obter respostas HONESTAS. É o CONSULTÓRIO LIVRE DE CULPAS.
Claro que nem sempre apenas deixando isso claro para os pacientes a culpa que eles já carregam desaparece. São histórias que precisam ser escutadas com atenção, exercendo a EMPATIA na essência. Nunca é tão óbvio quanto parece. A culpa já está no discurso do paciente. A proposta aqui é o médico poder facilitar essa expressão e ACOLHER. Isso produz efeitos terapêuticos e, no mínimo, fortalece o vínculo e aproxima o paciente do médico com informações mais verdadeiras. A “prescrição moral” é uma das piores coisas para que o paciente mude ou melhore hábitos. Não apenas médicos, mas também outros profissionais de saúde e a sociedade frequentemente “prescrevem” errado. É difícil ouvir sem julgar. Não somos padres, não somos pastores, rabinos, etc. Somos seres humanos! Mas precisamos entender que aquela pessoa que está à nossa frente precisa de ajuda.
O que não significa passar a “mão na cabeça”.
Diplomacia não era o meu forte, em especial no início da carreira. Julguei, dei bronca, esculachei um pouquinho, devo ter feito pacientes se sentirem ainda mais culpados. Quem de nós nunca? Certamente não ajudei essas pessoas e me arrependo sinceramente disso. Se fizessem comigo não gostaria…então por que fazemos com os outros? Alguns pacientes me fizeram acordar, outros não deram a chance de eu perceber que tinha errado…e só percebi depois. Antes tarde do que nunca.
Seu consultório é uma “zona livre de culpa”? Pense nisso.
Referência:
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Gilberto Amorim é oncologista da Oncologia D’Or do Rio de Janeiro. Ex-Chefe da Oncologia Clínica do HCIII do INCA Titular da ASCO, ESMO, SBOC e SBM. Carioca, torcedor do Fluminense e morador do Rio de Janeiro, esposo da Adriana, pai do Eduardo e da Bruna. Sou “avô” de dois gatos ragdoll a Chelsea e o Freddie Lorde Galahan. Corredor amador esforçado, apreciador curioso de vinhos, já tive um melanoma e meus pais morreram de câncer, e esses sofrimentos me trouxeram outra perspectiva na vida pessoal e profissional. Nos últimos anos tenho focado no auto-cuidado e na saúde mental e procurado exercer mais a empatia no dia-a-dia com os pacientes. Sempre buscando melhorar.
A fotografia que ilustra o post é de Tana Athana, publicada no grupo Fine Art & Long exposure Photography, no FaceBook