Voltando ao normal

agosto 21, 2017
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Por André Brooking Negrão:

“Teremos um dia um transtorno mental do diagnóstico apressado e prescrição impensada?”

A revisão das posturas na prática médica, algo em voga hoje em dia, proposto pelas campanhas Slow Medicine  e Choosing Wisely, deve englobar necessariamente todas as especialidades médicas. Na psiquiatria, uma revisão da postura profissional pode ser necessária diante do uso excessivo de categorias diagnósticas para classificar o comportamento humano. No intervalo entre suas edições de 1994 e 2013, o manual editado pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), que se tornou a “bíblia” do que se convencionou chamar de transtornos mentais, aumentou seu escopo de transtornos. Será que a população adoeceu tanto assim nestes anos? Talvez. É inegável que as taxas de transtorno mental são maiores nas grandes metrópoles e com a melhora global do atendimento aumenta a detecção de doenças. Porém, o que vários autores tem salientado é que muitas  vezes categorias diagnósticas são criadas em excesso e, contrariamente ao que se pode pensar em termos de um aprimoramento da medicina, os resultados vistos foram o aumento exorbitante das prescrições de psicotrópicos e a acentuação do estigma do transtorno mental. Estes temas são o assunto de “Voltando ao Normal“, escrito pelo psiquiatra norte-americano Allen Frances. O autor salienta e, é também nossa experiência, que estes manuais trouxeram uma melhora nos cuidados de pessoas com sofrimento mental mas, com o avançar do tempo, temos assistido algo assemelhado a outras especialidades médicas: uma aceleração da díade diagnóstico sumário/tratamento intervencionista.

O livro é um mea-culpa do Dr. Frances diante da sociedade, dos seus colegas psiquiatras e sobretudo, das pessoas que foram precipitadamente rotuladas como tendo um transtorno mental. Entre 1987 e 1990 ele foi o profissional responsável pela supervisão da então mais nova versão do manual diagnóstico de transtornos mentais pela APA, o DSM-IV. Ou seja, o que é revelado em “Voltando ao Normal” é uma crítica contundente da mais nova versão do DSM-V com sua expansão de categorias diagnósticos. Ela é feita por um profissional que sancionou a versão anterior e agora revisa os ditames de como se pratica a psiquiatria hoje em dia. O assunto é da maior importância, o tom apologético aparece em algumas partes do livro mas, a escrita é leve, sempre embasada, bem humorada e traduz uma pessoa dedicada ao seu ofício e comprometida a dar o melhor de si para seus pacientes e colegas dentro da Saúde Mental.

Logo no início do livro, ele descreve o dia a dia do trabalho das equipes responsáveis por levar adiante, ou não, as sugestões da criação ou mesmo revisão de categorias diagnósticas para transtornos mentais. Diferentemente do que se pode pensar, o autor revela que a opinião pessoal e veemência das sugestões predominam sobre as evidências médicas na eleição de qual entidade passará a ser uma nova categoria de transtorno mental. A repercussão das tais categorias diagnósticas, já naquela época e, hoje em dia, são grandes. As empresas de seguro de saúde exigem do segurado e, por extensão do médico, um código de doença para que ele seja reembolsado. Os testes para novos medicamentos são feitos a partir de pessoas que portam um diagnóstico definido nestes manuais. Do ponto de vista social, um diagnóstico pode determinar atenções e serviços além do habitual em tribunais e nas escolas. Esta última situação é paradigmática. Nos EUA, é norma professores de escola serem orientados a rever sua atuação para se adequar a particularidades de uma criança diagnosticada como, por exemplo, transtorno do deficit de atenção e hiperatividade.

Exemplos do “diagnóstico apressado e prescrição impensada”

Uma medida do quanto podemos estar diante de distorções na prática médica é verificar o crescimento das prescrições de psicotrópicos a cada ano. Um exemplo ilustrativo deste fenômeno é o uso de antidepressivos no tratamento de graus variados de estados de tristeza e desânimo acentuados. Historicamente, o DSM-IV aumentou a confiabilidade do diagnóstico de depressão maior, ou seja, profissionais dentro da saúde, incluindo clínicos (psiquiatras, médicos de outras especialidades), psicólogos e assistentes sociais passaram a reconhecer e, consequentemente, nomear o mesmo fenômeno, a depressão maior. Isto trouxe uma uniformização necessária a condutas, aos critérios para entrada ou exclusão em testes de medicamentos pela indústria farmacêutica e para a pesquisa – particularmente das abordagens psicosociais para a depressão maior e, finalmente, para estudos sobre o impacto econômico e social decorrente dos prejuízos na vida das pessoas corretamente diagnosticadas. Estes foram os benefícios vistos e desejados do sistema classificatório porém, distorções vieram lado a lado. Uma delas é o favorecimento da abordagem farmacológica em detrimentos de abordagens psico-sociais. O autor cita: 11% de todos os adultos norte-americanos fizeram uso de antidepressivos em 2010; o uso de antidepressivos quase duplicou de 1988 a 2008 e, finalmente, os antidepressivos são prescritos em sua maioria por clínicos gerais em consultas que não duram mais do que 7 minutos. O ponto do autor é que houve uma desproporção da prescrição de antidepressivos para pessoas preocupadas ou tristes que nem sempre tinham uma diagnóstico de depressão maior. Isto não trouxe uma melhora do tratamento das pessoas que, de fato, sofrem com depressão mas, movimentou um mercado de 11 bilhões de dólares em 2011, um montante que poderia ser usado para diminuir o estigma de transtornos mentais ou mesmo fomentar o acesso a abordagens psico-sociais para a depressão.

Vale aqui comentar um projeto piloto de iniciativa da Universidade de São Paulo, coordenado pela psicóloga e pesquisadora, Dra. Márcia Scazufca. Ela e sua equipe se propuseram a descobrir o número de pessoas idosas com depressão maior numa região pobre de recursos na cidade de São Paulo. O segundo passo foi treinar agentes comunitários leigos a fazer intervenções simples, através do uso de um app no sentido de atender e ajudar na superação dos sintomas e das consequência dos quadros depressivos. No projeto piloto, cujos dados foram divulgados agora em 2017, houve uma melhora expressiva dos sintomas do quadro depressivo nos idosos que receberam a atenção destes agentes comunitários, algo que demonstra o quanto intervenções de ordem psico-social, simples, de baixo custo e prescindindo o uso de medicamentos, podem mudar a qualidade da vida das pessoas que mais precisam de assistência.

Os possíveis modismos psiquiátricos com o DSM-V:

A nova versão do manual diagnóstico da APA, o DSM-V, traz um número maior de transtornos mentais do que a edição anterior. O Dr. Frances oferece uma lista de possíveis novas categorias que irão seguir a trajetória de modismos diagnósticos, ou seja, situações em que pessoas serão e, muitas vezes desejarão, um rótulo psiquiátrico com suas proverbiais consequências: pulverização e aumento do mercado para psicotrópicos e distanciamento da possibilidade de mudanças de rotina e atitudes por parte de profissionais da saúde e da sociedade. A lista inclui: o transtorno disruptivo da desregulação do humor, o transtorno do comer compulsivo, transtorno somatoforme, o transtorno de déficit de atenção, hiperatividade e impulsividade no adulto, o transtorno depressivo maior durante o luto, entre outros. A propósito, o tema do luto foi abordado aqui no site pela Dra. Ana Célia Rodrigues de Souza, em que ela salienta o mesmo que o Dr. Frances: “a psiquiatria deveria pisar com cuidado ao lidar com os ritmos básicos da vida”, ambos apontando no sentido do erro que é feito quando se apressa um diagnóstico de depressão negligenciado-se o contexto no qual o luto se insere na vida humana.

Proposta ao final do livro – voltando ao normal:

O autor arregimenta uma série de argumentos para sustentar o quanto a humanidade, ao longo da história da civilização, deu mostras da resiliência das pessoas diante das adversidades, sejam catástrofes naturais, guerras ou agruras criadas pelo desenvolvimento das sociedades. Ele advoga que devemos saber reconhecer quando pode ser do melhor interesse da pessoa que procura ajuda, orientar e aguardar o recrutamento destas habilidades de recuperação inatas antes de incluir esta mesma pessoa em categorias e automaticamente medicá-las. Isto se aplica particularmente aos profissionais que atuam dentro da saúde mental. Seu alerta e também conselho se estende para a sociedade no geral, ou seja, o quanto cada cidadão deve rever posturas estereotipadas, tais como modismos, rótulos imediatistas e uma busca por soluções prontas. Ele afirma:”… o normal precisa ser defendido das poderosas forças que tentam nos convencer de que estamos todos doentes“.

André Brooking Negrão, M.D., Ph.D.

Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular – InCor / HCFMUSP

André é psiquiatra, e foi entrevistado neste site falando de Medicina Baseada em Valores.

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