Por Antonio Aurélio de Paiva Fagundes Júnior:
Só encontrará a sua vida aquele que a perdeu.
Conforme afirmou Ladd Bauer em um comentário em nosso site, “devemos fazer o nosso melhor para manter a Slow Medicine como um conceito aberto, como um grande guarda-chuvas que cobre todas as formas de medicina permeadas de boas ideias de como cuidar dos pacientes. Um meme, não um plano ou um conjunto de técnicas. Uma reconstrução cultural de valores.” Recentemente, tivemos contato com a iniciativa Zentensivist, que efetivamente guarda semelhanças expressivas com a filosofia e os princípios da Slow Medicine, em particular em se tratando de um ambiente onde os protocolos, a tecnologia e a rapidez são a tônica. O dr. Antônio Aurélio contactou-nos e nos apresentou o conceito. Cremos que sua publicação em nosso site pode ser um braço destas ideais e, quem sabe, um novo paradigma para a terapia intensiva, introduzindo a reflexão, a cautela e serenidade na tomada de decisões.”
A enfermeira britânica Florence Nightingale, durante a Guerra da Criméia, iniciou o conceito de separação de pacientes críticos dos demais, com o objetivo de otimizar a vigilância e o tratamento desta população de alto risco. Utilizando análises estatísticas simples, foi uma visionária na época, 1854, e gerou com isso a base fundamental para a criação das unidades de terapia intensiva (UTIs). Mais do que isso, era reconhecida como um anjo da guarda pelos soldados, pois de lanterna na mão, percorria as enfermarias dos acampamentos atendendo os soldados doentes. Foi, por isso, reconhecida pelo jornal londrino The Times como a “A Dama da Lâmpada”. Mais de um século e meio depois, uma revisão das práticas que criamos ao longo deste período traria um benefício enorme aos nossos pacientes e a sociedade como um todo. Nightingale ficaria grata ao ver seu legado aplicado de uma forma verdadeiramente benéfica.
“O primeiro requisito de um hospital é que ele jamais deveria fazer mal ao doente”. Florence Nightingale
O ambiente das unidades de terapia intensiva se assemelha ao mundo contemporâneo de uma forma muito peculiar. Está entre os que lidam com maior volume de informações de forma rápida e voraz, gerando uma cascata também veloz de condutas. Na maioria das vezes, dada a própria natureza da atividade, seja pela velocidade, seja pela condição dos pacientes, as decisões muito comumente não podem ser compartilhadas e pensadas em conjunto com o paciente. Assim, a escalada de exames e as múltiplas terapias caminham em ascensão paralela com o número de informações disponíveis. O benefício para o paciente tem sido cada mais questionado.
O movimento Zentensivista tem este propósito. Matthew Siuba, intensivista da Cleveland Clinic, juntamente com demais colaboradores com o mesmo espírito, publicaram recentemente o Manifesto Zentensivista: Definindo a arte dos cuidados críticos1. À primeira vista, os conceitos Zen e a prática da medicina intensiva podem parecer antagônicos. Talvez, justamente por lidar continuamente com situações de urgência e emergência, associado a uma justificativa heroica de salvar vidas, uma abordagem Zen pode parecer incompetente e preguiçosa. Mas não o é.
O movimento recente corrobora, também em pacientes graves, o conceito de “menos é mais”, num grande número de casos. Claro que preserva a importância da especialidade. Cuidar de pacientes críticos, cada vez mais, pede sabedoria. Esta sabedoria implica em identificar quando “mais é mais”, e quando mais é absolutamente fútil, dispendioso e, algumas vezes, indigno.
Tratar pacientes dentro das chamadas “horas de ouro”, com intervenções como as usadas no tratamento do infarto, acidente vascular cerebral ou sepse, sabidamente requer múltiplas ações integradas e procedimentos muitas vezes complexos. Entretanto, nem a corrida contra o tempo, nem a complexidade da situação, devem nos desviar de um raciocínio crítico sobre as ações que estão sendo tomadas. Desta forma, o Zentensivismo traz como pedra fundamental um olhar pensante sobre alguns pontos importantes da nossa prática atual. 1) Compreensão da fisiologia: entender os mecanismos adaptativos da fisiologia, como parte do processo da doença. E pensar criticamente antes de buscar a normalização de números. E os números, em terapia intensiva, são muitos. Monitores nos avisam continuamente sobre quedas ou aumentos da frequência cardíaca e respiratória, pressão arterial, saturação de oxigênio, pressões e volumes ventilatórios, débito cardíaco, resistências vasculares e uma outra infinidade de parâmetros continuamente acompanhados. Inúmeros exames laboratoriais estão disponíveis, em vários momentos do dia. E as tentativas de corrigir e normalizar respostas adaptativas, sem contextualizar a condição clínica do paciente, impõe, com frequência, terapias desnecessárias, dispendiosas, e sem benefício clínico. 2) Prática questionadora: Zentensivistas tratam o paciente que tem a doença, e não a doença que o paciente tem, como proposto por William Osler. Desta forma, protocolos devem ser individualizados, ponderados e pensados frente ao paciente. 3) Presença serena: Zentensivistas entedem que uma presença serena e calma num ambiente frequentemente caótico e estressante como UTIs, por si só, funciona como uma intervenção poderosa. Humildade, paciência e transparência são capazes de humanizar e melhorar as interrelações da equipe multidisciplinar, assim como a comunicação e o acolhimento a pacientes e familiares. 4) Tolerância ao risco: O entendimento do benefício de uma observação vigilante em oposição a intervenções que tem como objetivo aplacar a ansiedade da equipe é fundamental para uma abordagem Zentensivista. Compreende-se que a solicitação de exames ou a realização de ações “só para garantir”, aumentam o risco de resultados falso positivos e eventos adversos. Tal atitude é mais prejudicial do que a aceitação de pequenas incertezas, estimadas e acompanhadas de forma passiva, mas cuidadosa. 5) Evitar e aliviar o sofrimento estão nas bases do movimento, seja quando o objetivo do tratamento é curativo ou não. Desta forma, implementa-se em todos os casos, cuidados paliativos em seu conceito amplo, de que sempre devemos minimizar o desconforto, seja ele físico, psíquico ou espiritual. Adequar as propostas de intervenção aos valores de pacientes e familiares, de forma verdadeira e transparente, com aceitação e sem julgamentos, faz parte da processo terapêutico.
Baseado em todos estes princípios, o manifesto Zentensivista propõe uma agenda para educação e treinamento da atual geração, e das futuras. Além disso, propõe o desenvolvimento de pesquisas que tenham por propósito comprovar o benefício de descalonar terapias e intervenções, além de desmedicalizar, contrariando o princípio atual de agregar cada vez mais medicamentos e procedimentos. Talvez algo que possamos chamar de “Less is More Clinical Trials”.
E assim, utilizando a fisiologia, evidências científicas de qualidade, raciocínio clínico e probabilístico, além de humanização e respeito aos valores individuais, o movimento Zentensivista, humildemente, chama a atenção para a necessidade de um pensamento menos automático e mais crítico, mesmo que justamente no ambiente de pacientes críticos. Dama da lâmpada, por favor, ilumine-nos.
Antonio Aurélio de Paiva Fagundes Júnior é médico intensivista e cardiologista, e crítico das muitas terapias fúteis que utiliza. No momento mora em Boston, com a esposa e os dois filhos, e faz um pós doutorado na Harvard Medical School
1. Siuba MT, Carroll CL, Farkas JD, Olusanya S, Baker K, Gajic O. The Zentensivist Manifesto. Defining the Art of Critical Care. ATS Scholar 2020:ats-scholar.2020-0019PS.