Cuidados Paliativos no Consultório do Oncologista: Menos Complexo do que Parece

janeiro 16, 2017
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Por Ana Lucia Coradazzi:    

Nos últimos anos, poucos assuntos têm sido tão comentados quanto a inserção da prática de Cuidados Paliativos como parte da formação e da rotina dos oncologistas. Artigos científicos descrevem benefícios de qualidade de vida e até de sobrevida. Análises financeiras demonstram sua viabilidade. Relatos de pacientes e familiares explicitam seu desejo de receber esse tipo de abordagem durante o tratamento oncológico. Mas, na prática, o que vemos são oncologistas um tanto receosos, temendo não estar à altura de toda a complexidade dos cuidados preconizados por equipes de Cuidados Paliativos. O resultado pode ser um profissional que negligencia completamente a importância desse tipo de estratégia, negando-se a aceitá-la como viável ou vantajosa, ou um oncologista que imagina estar praticando Cuidados Paliativos apenas por ter noções básicas sobre o tratamento da dor, por exemplo (essa última situação é talvez mais danosa ao paciente que a primeira).

O fato é que adotar Cuidados Paliativos na prática diária do oncologista não é tão difícil ou complexo assim. Não é necessário dominar técnicas invasivas de controle de dor, ou conhecer todas as drogas mais utilizadas na sedação paliativa, ou manter-se atualizado em relação aos estudos sobre o impacto da espiritualidade na qualidade de vida dos pacientes. Tampouco é preciso montar uma estratégia multidisciplinar completa em seu consultório, com uma enfermeira especializada em Cuidados Paliativos, um psicólogo, um nutricionista, um assistente social, um farmacêutico, um fisioterapeuta, um capelão e mais sabe-se lá quantos outros profissionais poderiam se fazer necessários para a abordagem de cada paciente. Não é isso que se espera de um oncologista que aplica os Cuidados Paliativos em sua rotina. Isso seria inviável tanto do ponto de vista prático e financeiro quanto no aspecto científico: o número de estudos envolvendo novos tratamentos oncológicos é imenso, e por si só já excedem a capacidade de atualização constante dos oncologistas. Cheng, em seu artigo publicado em 2013 no Journal of Oncology Practice, salienta a possibilidade de utilizar as práticas consagradas em Cuidados Paliativos como parte da rotina real dos oncologistas, sem necessidade de mais do que uma boa comunicação e conhecimentos básicos do controle de sintomas.

Cheng discorre, especificamente, sobre a prática de Cuidados Paliativos em seu nível primário, que consiste de três pilares principais. O primeiro, e mais importante, é o aprimoramento da comunicação com pacientes e suas famílias. Isso se resume, basicamente, em perguntar, responder, perguntar novamente, até que se tenha certeza de que o assunto está claro para ambas as partes, sem atropelar o tempo de cada um dos envolvidos. Parece pouco, mas não é.

A maioria dos oncologistas é capaz de dizer ao paciente que sua doença é grave, até mesmo fatal, mas em geral essa conversa termina aí. É uma conversa única e pontual, e é essencialmente esse o “erro”:  o fato da gravidade ter sido citada não significa que ela foi compreendida. O oncologista pode (e deve) voltar a tocar no assunto sempre que houver uma mudança de tratamento, um resultado de exame de reavaliação (positivo ou não), uma alteração de planejamento, uma piora clínica. Isso é importante porque, conforme a compreensão do paciente vai se aprofundando, surge a possibilidade de tocar em novas questões, como o desejo (ou não) de ser levado a uma UTI, a existência de um testamento, a determinação de alguém de confiança que possa tomar as decisões por ele caso ele se torne incapaz para isso. Essas conversas não são angustiantes quando fazem parte de um processo contínuo, pelo contrário: trazem alívio para todos os envolvidos e evitam decisões tomadas às pressas, incoerentes com os desejos dos pacientes. Não por acaso, esse é justamente o tipo de relação médico-paciente que está presente nos princípios mais essenciais da Slow Medicine: consistente, coerente, e baseada na construção da confiança e respeito mútuos.

O segundo pilar é inserir, em sua anamnese corriqueira, a avaliação de outros sintomas frequentes em pacientes oncológicos, evitando a armadilha de restringir suas perguntas à dor. Isso inclui não apenas sintomas físicos, como fadiga, dispneia ou constipação intestinal, mas também perguntas sobre o estado emocional e sobre o papel da espiritualidade. Existem várias ferramentas bem simples para isso, até mais simples do que o Karnofski Performance Scale (KPS), que qualquer oncologista sabe de cabeça e aplica quase que intuitivamente. Diagnosticar sintomas relacionados à doença e ao tratamento pode ser um diferencial imenso entre oncologistas, e o motivo é simples: quem pergunta tem acesso às respostas, e com as respostas em mãos somos capazes de promover alívio. Isso não significa que o oncologista saberá resolver questões espirituais ou quadros depressivos importantes, e nem é isso que o paciente espera dele. Mas perguntar sobre essas coisas proporciona a chave para reconhecer onde está o problema e permitir que o paciente seja encaminhado para abordagem correta (um psicólogo, um psiquiatra, um nutricionista, um pastor). O que se espera é que o oncologista saiba tratar os sintomas mais frequentes e menos complexos, e reconhecer prontamente quando o quadro exige mais do que ele pode oferecer.

E é nesse ponto que chegamos ao terceiro pilar: aplicar estratégias básicas que paliativistas usam para controlar os sintomas mais corriqueiros. Não é preciso mais que o acesso a alguns manuais práticos de Cuidados Paliativos para saber o básico sobre o manejo da dor, o papel da dexametasona no controle da fadiga e da náusea, ou do haloperidol no controle do delirium. São pequenos passos que fazem uma diferença brutal. E, é claro, é importante introjetar, nas profundezas da prática diária, o conceito de que o encaminhamento precoce de pacientes para equipes de Cuidados Paliativos é benéfico e desejável, e deve ser feito sempre que houver essa disponibilidade.

Tudo isso contribui muito para a qualidade de vida dos pacientes e para o estreitamento de sua relação com o oncologista, e é bastante óbvio que isso é desejável. Mas há ainda um outro motivo para que os oncologistas adotem os princípios paliativistas em sua prática: isso faz bem a eles próprios, proporcionando maior satisfação profissional, menor risco de burnout e melhores índices de saúde física e emocional. Hui descreveu de forma brilhante esses benefícios recentemente, num artigo publicado no Journal of Clinical Oncology.

Quem se aproxima de seus pacientes sabe valorizar a oportunidade valiosa de presenciar a natureza humana muito de perto, com todas as suas agonias e belezas. O aprendizado extraído desse tipo de experiência extrapola a excelência profissional: ele nos transforma como seres humanos, e aprofunda o significado da nossa própria vida. Em outras palavras, proporciona ao oncologista uma existência mais plena e feliz.

 

Referências Bibliográficas

  1. Cheng J., King L. M., Alesi E. R., Smith T. J. Doing Palliative Care in the Oncology Office. Journal of Oncology Practice 9 (2): 84-88, 2013.
  2. Hui D., Finlay E., Buss M.K., Prommer E. E., Bruera E. Palliative Oncologists: Specialists in the Science and Art of Patient Care. J Clin Oncol 33 (20): 2314-2318, 2015.

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Ana Lucia Coradazzi:

Nasci na cidade de São Paulo, mas moro em Jaú, no interior, há muitos anos, com meu marido e minhas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, fiz especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Hoje atuo como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integro a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horinhas vagas), também reservo um tempo para minhas corridas, que mantêm o corpo saudável e a mente tranquila.

 

 

 

1 comentário

  1. Excelente artigo, amiga!

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