A PESTE

junho 27, 2020
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11 min de leitura

Por Jaqueline Doring Rodrigues:

“E no meio de um inverno eu finalmente
aprendi que havia dentro de mim
um verão invencível.”

Albert Camus

– PRIMEIRA FASE: A COMPREENSÃO-

Platão, em um de seus diálogos, fala da ordem do mundo e mostra que os princípios desta ordem regem também o homem e que a filosofia é a medicina da alma. Pode-se dizer, então, que viver a Medicina além da prática clínica é essencialmente ter amor à sabedoria, ter amor à vida; é nela incluir arte de viver. A Slow Medicine traz o resgate da medicina para uma vida saudável, e isso inclui fazer uma leitura como a proposta neste texto, identificar-se com os personagens e extrapolar as diversas possibilidades de compreensão em todas as instâncias de nossas vidas.

Se no homem houvesse o hábito de olhar para o passado e aprender com o legado deixado por seus ancestrais, talvez se soubesse enfrentar melhor as adversidades, se encontrassem respostas sem tanto sofrimento, já que o homem se entenderia como parte da natureza e, portanto, também dos seus ciclos. Partindo deste princípio, convido você a embarcar na aventura do livro A Peste, de Albert Camus. Digo aventura porque vou desafiá-lo, caro leitor, a ultrapassar seus limites – nesta primeira etapa, o limite da compreensão.

Fica muito claro, durante a leitura, que mesmo a melhor representação de um fato não surtirá entendimento se não nos libertarmos do que nos impede de avançar. E o que, afinal, nos limita? Ouso dizer que, na resposta para esta pergunta, está o cerne de toda a trama.

Em uma cultura onde o sinônimo de viver consiste em saciar desejos e obter prazeres, e onde tudo que demanda maior esforço é visto de forma negativa, um fato novo que rompe com a mecanicidade do hábito pode levar o povo à loucura. A loucura à que me refiro aqui é aquela que tende a desequilibrar as emoções e comportamentos de um homem. Em uma cidade como Orã – local onde se passa a história –, na maior parte dos dias, as pessoas tendem a ocupar-se do trabalho (com objetivo meramente financeiro), o amor não passa do preenchimento de uma carência afetiva, e a morte é um coroamento para aquele que já havia morrido socialmente. Assim, não é de se surpreender que, mesmo durante um isolamento social que pede transformações, apenas se trocam velhos hábitos por novos, não menos tóxicos. Inclusive, dependendo da velocidade da leitura e da sensibilidade do leitor, podem-se perder detalhes essenciais, já que não há exaltações nos caracteres dos personagens. São propositalmente cinzas como a cidade.

No livro, é narrada a história de uma peste originada dos ratos. Talvez esteja nesta simbologia a verdadeira intenção do autor, pois deixou claro no início da história que, para alguns, esta alusão não traria esclarecimento. Afinal, quem está preso em uma forma mental viciada, ao ser-lhe ofertado um banquete, alimentar-se-á de identificações para novas prisões, menos reais que as anteriores.

“É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe.”

Daniel Defoe traduzido por Albert Camus

Mas o que isso significa além dos fatos narrados? Atenho-me a esta busca mais profunda.

Primeiro, em uma cidade esquecida de si mesma, onde o sentido de unidade do povo se perdeu e se trabalha, principalmente, para forças materiais, é esperado que se caminhe em direção às sombras. E, sem sentimentos verdadeiramente humanos, as pessoas tornam-se cada vez mais reféns de aspectos instintivos de sobrevivência (que as levarão a entocar-se nos interiores de edificações fartas de alimentos), em um ambiente onde a falta de higiene mental torna ainda mais insalubre a vida. Dessa constatação, fica mais clara a compreensão do porquê de ratos. O animal representa a mente humana: inquieta, insatisfeita, perdida na arbitrariedade com que identifica suas experiências, sem controle dos pensamentos, seguindo os fanatismos momentâneos em massa, faminta por prazeres e buscando insaciavelmente por novos ambientes para alimentar seus desejos. A mente esconde-se em lugares escuros, fugindo da luz do dia, rastejando sobre a terra, e, por não levar os olhos aos céus, não almeja um Ideal elevado. Assim como os ratos, o povo de Orã protege-se em redes de galerias criadas com água, luz artificial, comida e medo. Lá, vive na escuridão dos dogmas que o impede de conhecer um universo inteiro. O predador – neste caso, a causa primária dos esconderijos, o verdadeiro mal do qual se foge –, encontra-se na razão suprema de todo mistério: o medo de conhecer a si mesmo.

A segunda questão refere-se ao fato de a peste ser a expressão de um ambiente há muito tempo contaminado onde agora não é mais possível se esconder, seja nas tocas, nas noites ou nos esgotos das casas – um ambiente que lentamente corrói as entranhas de seu povo. A febre, ao causar as supurações no corpo, retrata a tentativa de exteriorização de tamanha degradação moral que se está vivendo. E aqui me compadeço do narrador e identifico ali todos os males que assolam a sociedade nesta pandemia no início do século XXI.

A medicina, muitas vezes com foco centrado na doença física, está condicionada a uma lógica reducionista, de relação linear entre causa e efeito. Simplificando para fins didáticos: qualquer desconforto é determinado pela alteração de uma molécula a ser tratada quimicamente; assim, a partir da base biológica, restabelecer-se-ia a harmonia, sem muito esforço (por exemplo, ingerindo-se um comprimido).  A filosofia da Slow Medicine compreende que o esforço consiste em utilizar-se de toda a ciência da medicina tradicional e aliá-la a medicina complementar sempre que possível, baseada em boas evidências.

O primeiro erro é não se responsabilizar e atribuir o que acontece a culpados. Tem-se uma síndrome de vitimização que também ultrapassa fronteiras, e, quanto maiores os problemas, em maior grau encontra-se o réu. Falo do velho hábito de acomodar-se nas debilidades e fraquezas, de transferir culpas aos outros, às doenças, às instituições, aos Estados e/ou às lideranças. De fato, o terrorismo, a corrupção e a violência são os males que assombram uma civilização quando esta se encontra em uma trajetória descendente, fadada ao fracasso. Apontar culpados, não se responsabilizar pela sua saúde física e mental e ocupar-se em fomentar o medo diante de situações críticas apenas refletem a pouca compreensão da vida e o grande distanciamento de sua natureza humana.

Creio, prezado leitor, que está claro também a você que, por maiores que sejam nossos avanços tecnológicos e científicos, as pessoas estão cada vez mais deprimidas, sem esperança, sem equilíbrio emocional, e cada vez com mais dificuldade de conviver com o outro. E por quê? Porque o ser humano está doente.

Neste ponto, trataremos do terceiro aspecto: o que é a doença? Expandindo o significado da peste tratada no livro (onde a cura seria exterminar todos os ratos e fazer uso em massa do soro pelos doentes), pergunto a você, justo leitor: qual a cura para a enfermidade do homem? Desde já, perdoe-me por, de forma simplista, trazer um assunto que me é tão caro e que jamais ousaria encerrar aqui em um consenso. Porém, peço autorização de todos para dividir o pequeno feixe de luz que julgo capaz de mostrar alguma possibilidade de ascensão em um caminho já extensamente trilhado de decadência.

Não se trata de ficar doente, mas sim, de já se estar doente. Falo dessa forma, pois considero a doença como algo mais do que uma simples alteração natural.  Um dos princípios da Slow Medicine constitui no conceito positivo da saúde, a qual não significa apenas ausência de doença, mas um estado de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social. Então, pergunto-lhe: quem não está doente? Onde realmente se localiza Orã?

Estar doente, dessa maneira, pode referir-se a ter vulnerabilidades ou desarmonias em alguma das três dimensões humanas – na concepção grega, entendidas como nous, psique e soma. Podemos, então, apreender que a natureza nos proporciona entrar em contato com as desarmonias que nos afligem, por meio de sinais, sintomas ou doenças? E que, de certo modo, questões de ordem mais sutil, como as psicológicas, podem ser o princípio da maioria das enfermidades? O processo de vitimização alimenta a falta de responsabilidade que distancia o homem da verdadeira cura que ele almeja encontrar, pois, em primeiro lugar, precisará querer conhecer-se a si mesmo.

É nítido que se carece de melhores condições de higiene física, porém, acima de tudo – em geral –, se está desprovido de ferramentas para higiene psíquica. Por isso, estamos contaminados por um ambiente mental tóxico incomensurável. Para a Slow a prevenção consiste na pedra angular de um construto ideal de saúde e com isso a atividade física regular, pensamento positivo e flexibilidade mental são essenciais para manter nossa psique saudável.

O que urge, neste momento histórico, é a priorização da formação do caráter do povo, do desenvolvimento de princípios e de coerência, consagrando-os em uma vida moral integrada à natureza. A busca consiste em combater a causa única de todos os males, que é a ignorância (no mais alto nível de compreensão da dimensão da palavra).

Há dois mil e quinhentos anos, Platão já dizia que a origem e a causa das enfermidades eram, em primeiro lugar, a ignorância e, em segundo, a loucura – e que geralmente a loucura provém da ignorância. Um rato alimenta-se do que estiver disponível, e, para eliminar a peste (metaforicamente), precisa-se escolher, dentre o que temos no mundo, aquilo que realmente alimenta o homem, sem excessos, sem paixões, sem resíduos e com discernimento.

“(…) A única maneira de lutar contra a peste é a honestidade”, disse o doutor Rieux no final da parte 1 do livro. Ou seja, faz-se necessário admitir-se estar doente, que todos sejam médicos de si mesmos e viver interiormente a medicina com todo o seu simbolismo, e, nesse caso, inclui-se o significado também da serpente, predadora daqueles roedores. A cura pela renovação associada à serpente só é atingida quando verdadeiramente se assume a ignorância diante da verdade – quando se rompe a casca, se desvela a essência da trama.

Orã é sinônimo do exílio do homem. Reflete um tempo em que se está aprisionado em si mesmo para buscar matar suas formas mentais doentes. Nesse local, muitos são os personagens, mas pouco se conhece deles. Ora se é porteiro, ora funcionário público, ora prefeito. Finalmente, mais importante que focar os esforços na busca do soro que possa eliminar a doença, precisa-se compreender que, talvez, a saúde nem sequer existiu, pelo simples fato de que não se libertaram das amarras da ignorância (às vezes, por uma vida toda). Afinal, os homens estão ocupados demais, culpando-se uns aos outros, distraindo-se, alternando papéis, esquecidos de quem são. E, quando se é estranho de si mesmo, corre-se o risco de tornar-se seu próprio inimigo. Em um tempo em que nos falta referências, estar exilado de si é o pior dos crimes. Afinal, caros leitores, um guerreiro não escolhe seu campo de batalha. Não se trata de uma guerra contra vírus ou ratos, mas sim de uma batalha interna e, para encontrar o caminho da vitória, precisa-se conhecer seus adversários.

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Jaqueline Doring Rodrigues: Nasci em 4 de dezembro de 1985 em Viçosa, Minas Gerais; ainda criança mudei-me para o estado do Rio Grande do Sul, onde realizei parte de minha formação acadêmica. Formei-me na Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo, RS, em dezembro de 2011. Fiz Residência de Clínica Médica pela Universidade Fronteira Sul em Passo Fundo, e Residência de Geriatria na Santa Casa de Curitiba. Sou pós-graduada em Cuidados Paliativos pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e secretária da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), regional do Paraná.

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Najuah atari
Najuah atari
4 anos atrás

Que texto incrivel! Me tocou muito! Um texto extremamente necessário nessa contexto desenfreado, robótico e gélido que vivemos!!!! Obrigada!!! ♥️

Zoé Mastrodicasa
Zoé Mastrodicasa
4 anos atrás

Lindo texto! É bom ver que é possível voltar a considerar o “ser humano” como ele é.

Otávio Vanni
Otávio Vanni
4 anos atrás

Excelente texto! Parabéns e obrigado por compartilhar suas ideias.

Ronaldo Figueiredo Taddeo
Ronaldo Figueiredo Taddeo
4 anos atrás

Reflexão profunda sobre o ser humano e merece parabéns

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