E não é que Hipócrates estava certo?

maio 7, 2019
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Por Ana Lucia Coradazzi:            

Enfermeiras sabem o que dizem. Em seu texto How to Make Doctors Think About Death, publicado no The New York Times, Theresa Brown fala de forma aguda e sem rodeios sobre a extrema inabilidade dos médicos em enxergar a realidade de seus pacientes graves. Enxergamos com precisão cada um de seus diagnósticos, interpretamos cada um de seus exames, prescrevemos com maestria os melhores tratamentos para cada uma das condições médicas diagnosticadas… mas somos frequentemente incapazes de inserir tudo isso no contexto de vida do paciente. Como a própria Theresa conta em seu texto, tratamos agressivamente a pneumonia enquanto ignoramos a leucemia aguda intratável que está por baixo dela. Mantemos o paciente hemodinamicamente estável, enquanto ignoramos a insuficiência hepática grave terminal. Prescrevemos a quimioterapia de ponta para o câncer metastático, mas não levamos em conta o quadro demencial avançado. Tratamos o que podemos tratar, e ignoramos o que não podemos. E em geral estamos tão absortos tentando resolver o que podemos que precisamos de alguém que nos diga, sem mais delongas, que já é hora de deixar o paciente partir (às vezes, esse alguém é o próprio paciente…).

            Desde muito cedo, todos nós, médicos, somos apresentados a Hipócrates e suas ideias sobre a Medicina. Mesmo os mais desatentos acabam ouvindo falar dele, mesmo que seja somente no dia da formatura, quando todos fazemos seu juramento, tomados de emoção, e certos de que seguiremos os princípios hipocráticos durante toda a nossa vida profissional. Suas palavras dignificam nosso trabalho como médicos, nos inspiram, nos fazem enxergar significado no que fazemos. Elas nos encantam, e nos fazem sentir o poder quase divino que nos é atribuído ao nos embrenharmos no conhecimento médico. Mas Hipócrates também nos lembra de que sempre teremos limites. Foi ele quem nos advertiu, centenas de anos atrás: “Não devemos oferecer tratamento a pacientes que estão completamente dominados pela doença.”

            É claro, Hipócrates não tinha como prever como seria nossa Medicina atual. Não passava por sua mente que conseguiríamos desenvolver medicamentos capazes de exterminar o câncer, controlar o diabetes ou prevenir doenças cardíacas. Hipócrates tampouco poderia imaginar uma tecnologia capaz de substituir o funcionamento de órgãos, ou Unidades de Terapia Intensiva habilitadas para fazer verdadeiros milagres. Certamente não passava pela sua cabeça que teríamos robôs realizando cirurgias e órgãos sendo criados em laboratório para substituir nossos órgãos doentes. No mínimo, Hipócrates ficaria perplexo por várias semanas. Mas, passado algum tempo, já recomposto de seu choque inicial, provavelmente Hipócrates recuperaria seu bom senso e nos advertiria novamente, dizendo algo como: “Não devemos oferecer tratamento a pacientes que estão completamente dominados pela doença. Enxerguem o contexto, não apenas as partes.”Porque é isso que aprendemos a fazer hoje: tratamos as partes. Damos atenção especial ao que é reversível (que não é necessariamente o mais importante). Tratamos doença atrás de doença, exame atrás de exame, e vamos somando: mais consultas médicas, mais exames solicitados, mais medicamentos adicionados à já longa lista do paciente. Ao mesmo tempo, vamos subtraindo. Subtraímos nosso tempo junto ao paciente, nossa atenção à história por trás da doença, e nosso conhecimento a respeito dos valores que aquela pessoa carrega dentro de si. Desaprendemos a agregar a doença ao doente.

http://www.pletz.com/blog/medicina-que-convem-cada-um/

            Os casos contados por Theresa Brown não são “privilégio” dos americanos. Vemos atitudes médicas insensatas e pouco lógicas logo ali, no hospital da esquina, no postinho de saúde, na casa vizinha à nossa. Mesmo quando paramos para pensar e nos esforçamos para agir com parcimônia, é comum “escorregarmos” e adotarmos os velhos hábitos, nada hipocráticos, que nos impelem a colocar a doença na frente do doente. Essa é nossa zona de conforto. Sem falar no quanto é muito mais fácil prescrever um antibiótico do que explicar para o paciente e sua família os motivos de não fazê-lo. É muito mais rápido encaminhar o paciente instável à UTI do que se sentar com ele e sua família para explicar que sua vida está chegando ao fim, e que a UTI não será capaz de trazê-la de volta. Enfermeiras sabem o que dizem: médicos não têm tempo para fazer essas coisas (e, quando têm, utilizam esse tempo para outras atividades, como se manterem informados sobre mais tratamentos e exames recém-descobertos). Dificilmente um de nós separa um tempo decente para acolher as dúvidas de seu paciente grave, buscando realmente compreender quais são suas angústias, quais são suas prioridades, e para construir com ele uma estratégia que faça sentido. 

            Nosso distanciamento dos princípios hipocráticos encontra justificativas de toda sorte: da falta de tempo à infra-estrutura inadequada, do apelo comercial farmacêutico ao encantamento sedutor das novas tecnologias, da postura inerte dos pacientes à arrogância crescente dos médicos. Mas o fato é que pouco importam as razões, o que nos fere diariamente são as consequências: pacientes sentindo-se mal-cuidados, famílias sentindo-se abandonadas, e médicos sentindo-se frustrados. Os princípios propostos pela Slow Medicine nada têm de novo, pelo contrário. Eles representam o que deveríamos ter feito desde sempre: agregar nossas novas descobertas aos valores atemporais ensinados por Hipócrates. O uso parcimonioso da tecnologia, princípio fundamental da Slow Medicine(e um dos mais grosseiramente ignorados pela Medicina moderna), é uma tradução repaginada de um dos ensinamentos hipocráticos mais contundentes: “Usarei meu poder para ajudar os doentes com o melhor da minha habilidade e julgamento; abster-me-ei de causar dano ou de enganar qualquer homem com ele.” Ou alguém acredita que realizar manobras de ressuscitação cardíaca para um paciente em fase terminal de câncer realmente lhe trará alguma espécie de benefício, e não representa uma expectativa absolutamente  irreal? Médicos vêm perdendo, ao longo dos séculos, a habilidade de pensar no indivíduo. Não há tempo para escutá-lo, para entendê-lo, para reverenciá-lo, para propor estratégias que lhe sirvam como uma luva. Não sobra tempo nem para um café (e olha aí outro princípio slowque vem sendo negligenciado: a individualização).

            Talvez o maior choque que Hipócrates teria, caso acordasse de repente em nossa época, fosse justamente esse: onde está o tempo dos médicos junto aos seus pacientes? Ele se perguntaria, estupefato, como é que conseguimos exercer a Medicina sem conhecer a pessoa por trás da doença? Como sabemos se ela será capaz de lidar com as restrições que a doença (ou os tratamentos prescritos) lhe impuserem? Na falta de tempo para enxergar o todo, nos contentamos em lidar com as partes! Bem que Hipócrates nos avisou… E quando o abordássemos, curiosos e orgulhosos, perguntando o que ele achava de todo o enorme progresso que conseguimos, talvez ele nos olhasse com piedade, como quem olha para alguém que não tem ideia do que está perdendo: “Acho que preciso de tempo pra pensar… alguém aceita um café?”

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Ana Lucia Coradazzi

Nasci na cidade de São Paulo, mas moro em Jaú, no interior, há muitos anos, com meu marido e minhas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, fiz especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Hoje atuo como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integro a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horinhas vagas), também reservo um tempo para minhas corridas, que mantêm o corpo saudável e a mente tranquila.

3 Comentários

  1. Obrigada pelas palavras, José Carlos! Espero chegar aos 87 anos com tanta disposição quanto você! Um grande abraço!

  2. Obrigada pelas palavras, José Carlos! Espero chegar aos 87 anos com tanta disposição quanto você! Um grande abraço!

  3. Excelente esse texto, bem como todos os que Ana Lucia escreve. Não sou médico e sim farmacêutico-bioquímico que desde 1951, como acadêmico de Farmácia já auxiliava os trabalhos da disciplina de Química Fisiológica, no primeiro ano do curso de Medicina na Fac. de Medicina da USP. Desde essa data estou junto dos médicos, mesmo aos 87 anos!

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