DELIRIUM – sobre as nossas mães

outubro 27, 2020
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                                                                           Por : Carla Rosane Ouriques Couto                                      

                        “Na verdade, todos somos médicos, doentes e familiares também, personagens de histórias: histórias são o que somos; contar e escutar histórias é o que fazemos.”

Kleinman, 1999.

     Era a madrugada mais fria do ano na cidade gaúcha onde cresci. Agosto estava realmente “a gosto de Deus”, na prolongada agonia da pandemia de Covid-19. Essa história seria minha especial agonia de agosto. E poderia acontecer com a mãe de qualquer um.

     O ar condicionado do quarto do hospital não funcionava, ninguém sabia por onde andava o controle. Enrolada num cobertor, despertei de uma espécie de transe, pela voz do jovem e gentil cuidador da idosa do leito ao lado: “a senhora não quer sentar-se um pouco? Há três horas está cantando aí de pé…”

     Então dei-me conta do meu delírio. Ao lado da cama de hospital de minha mãe, que completa nesta primavera 94 anos, tinha já cantado baixinho todas as cantigas de ninar que conhecia, enquanto segurava suas mãos que insistiam em se movimentar no ar, ora costurando, ora cozinhando, ora organizando coisas, ora cumprimentando pessoas invisíveis aos meus olhos. Minha mãe, uma Diva por nome, fisionomia e personalidade, de comportamento reservado, cordial e elegante, de fala baixa, pausada e moderada, era agora criança pequena em Garibaldi. Corria livremente pelas ruas, conversando alto com primos, avós e tios. Reaprendi o nome de alguns ancestrais nesse passeio e percebi até de quem ela era mais próxima. A surdez desapareceu por mágica e respondia alto todas as minhas perguntas sobre por onde andava e o que estava fazendo. Era a criança travessa e desobediente que correndo da porta de casa, foi atropelada por um dos três carros da então pequena vila de colonização italiana. Falava sem parar e sem dormir há mais de 30 horas. 

     Quando cheguei a cidade, havia passado por um pronto atendimento, onde todos os exames de laboratório e de imagem não mostraram nada de grave ou específico. Não, ela não era um caso de Covid-19. Toda a família e uma cuidadora haviam testado positivo recentemente. Mas ela nem ligou para o vírus. A urina sempre fora contaminada, por uma incontinência de muitos anos, fruto daquele atropelamento na infância e que resistiu a todos os tratamentos. Predestinada a longevidade, foi operada por um médico alemão de passagem pelo sul, naquele final da década de vinte do século passado, restando uma grande cicatriz e uma sequela na bexiga.

      Liberada pelo pronto atendimento com um antipsicótico a pedido de meu irmão caçula, seu cuidador principal, permaneceu muito agitada e de difícil manejo em casa. Contactamos seu geriatra assistente de muitos anos, assim que retornou do P.S. com detalhado relato do caso. Era uma sexta-feira. A resposta foi breve, uma frase, que mantivéssemos a conduta do pronto socorro e a levássemos a consulta na terça-feira seguinte. Na segunda-feira em novo contato, concordou na internação. O geriatra chegou à tardinha ao hospital, que estava cheio de protocolos e restrições sanitárias adequadas e rígidas e examinou brevemente sua velha e conhecida paciente. Olhou os exames. Tudo não durou 10 minutos. Coloquei pela primeira vez minha opinião como médica: parece ser um delirium provocado por infecção urinária. Não houve uma resposta clara. Disse que iria esperar novos exames, já que havíamos coletado urina em casa. E enfatizou ao final: “sou eu quem prescreve aqui”. Contamos que ela estava há dois dias sem dormir, falando sem parar. Ele respondeu: “é assim mesmo, a família tem que aguentar…” Apesar de achar tudo meio estranho, coloquei-me no lugar de familiar, comportei-me como fui educada e entendi que ela seria medicada nessa mesma noite. 

     Ao ser despertada pelo vizinho cuidador, revi tudo que acontecera desde meu deslocamento do sudeste para o sul, para auxiliar meu irmão, o único filho na cidade. Aprendemos com a própria paciente, nossa mãe, a sermos cordiais, educados e a respeitar a profissão médica. A escolha profissional de três dos cinco filhos, estava com certeza ligada a forma como ela e meu pai, sempre se referiram aos médicos. Confiança, serenidade, admiração. Era o que havia em suas palavras, desde nossa infância, cuidados por médicos de origem judaica na pequena Cruz Alta. O tempo e o vento minuano nunca alteraram esses sentimentos. Nossa comportada Diva, sempre foi uma boa paciente. E nós, seus filhos médicos, não conhecíamos pessoalmente seu geriatra. Acompanhamos condutas e por vezes sugerimos mudanças nas prescrições. Mas nunca pessoalmente, sempre através de nosso irmão. Entendi então a frase: “sou eu que prescrevo aqui” e o comportamento esquivo do colega de profissão, sem olhar nos olhos. Ficou então clara a pouca importância da paciente nesse contexto. Não era a velha e conhecida paciente, era a mãe idosa de três médicos palpiteiros. 

     Voltei a percorrer os caminhos delirantes de minha mãe. Agora queria puxar as persianas da janela, porque vinha uma tempestade. Ouvia chuva e trovoadas. Andava por ruas desconhecidas perguntando aos primos onde era a casa de número 65, o número da casa onde vive há 55 anos. Parecia perdida, desolada, mas corajosa. A voz lhe faltava as vezes por cansaço. Nunca ouvira aquele tom de voz nela. Nunca ouvira aquela risada tão alta, quando encontrava velhos companheiros de infância. Mãos e braços precisavam ser contidos o tempo todo. Perguntei a enfermagem sobre medicação prescrita para agitação, e a resposta foi de que não havia nada prescrito. O frio feroz continuava, ninguém sabia onde estava o controle, continuei de pé ao lado da cama, segurando suas mãos, conversando e cantando, conhecendo melhor seu passado, até o amanhecer.

     Pela manhã, troquei de turno com meu irmão e fiz então o que deveria ter feito horas atrás. Olhei a prescrição.  Não havia nenhum tratamento específico, apenas hidratação e prevenção de trombose. Mais nada. Enviei nova mensagem ao geriatra assistente, que em geral nada respondia e nada respondeu. Um de meus irmãos enviou um áudio a ele, que em resumo pedia: apenas queremos que ela durma um pouco. Cheguei congelada na pequena casa onde crescemos, liguei o ar condicionado de todos os quartos e a velha rede de energia caiu por sobrecarga. Cansada demais pelas noites sem dormir, chorei pela primeira vez desde o início da pandemia, sentada no chão de madeira da pequena sala. Pensei que essa sala parecia tão grande na infância, quando cinco crianças sentadas no chão viram a chegada do homem à Lua numa televisão recém comprada. Olhei o grande retrato de 90 anos de minha mãe na parede, rezei para fazer o certo. Senti que como filha, não estava cumprindo meu papel. Que deveria ser agora, além de filha, defensora. Deveria defender minha mãe da própria medicina e garantir o que ela garantiu aos cinco filhos: o melhor cuidado. E o que estava acontecendo até então, era apenas descuido e negligência. Ouvi de vários cuidadores da cidade que era normal para aquele médico, não medicar sintomas psiquiátricos em idosos. 

     Sem resposta a tentativas de contato com o médico assistente, naquele segundo dia de internação, comecei então a medicar minha mãe para o quadro que ela apresentava – delirium consequente a uma infecção urinária ( já tínhamos o resultado positivo para infecção), com ajuda de minha filha psiquiatra, após um debate de pouco consenso com meus irmãos médicos.  Providenciei a medicação, levei ao hospital e havia então uma prescrição do hospital e uma da família. Encontrei por acaso um psiquiatra no hospital que se mostrou pronto a uma interconsulta, desde que solicitada pelo médico responsável. Mas a sugestão também não foi respondida. De toda forma esse colega foi um bom suporte no momento. 

     Aguardei a visita médica diária, e então confrontei o colega, sobre o diagnóstico e sua conduta. A resposta foi um comentário curto: “vocês são três médicos, se não estão satisfeitos, é só trocar de médico. Posso transferir para um colega de imediato”. Respondi que era isso que desejávamos. Ao dar as costas e sair, ouvi ainda dele: “ficam incomodando o médico por bobagens”. Respondi que não era bobagem, era a “nossa mãe”. Levei mais 12 horas de contatos, para encontrar outro médico assistente, que ao receber o caso, tratou adequadamente a infecção, mas ainda com alguma dificuldade, o quadro demencial. Passamos assim uma semana no hospital, com as duas prescrições, e grande melhora do quadro geral e do comportamento.

     Em casa, procuramos uma atenção domiciliar médica e de cuidadores. Felizmente achamos, entre as poucas opções da cidade, ainda que fora do seu convênio médico. A visita médica teve as características integrais tão caras ao movimento Slow Medicine: quem é essa idosa? Do que gosta? Quem foi durante toda a vida? Como é a família? Quem são os cuidadores? Pudemos transmitir para a médica, com formação em Cuidados Paliativos, a história de nossa mãe, que possivelmente o outro médico, não chegou a conhecer, nos anos de “tratamento”. 

     Com mais calma e tempo, naqueles dias em que permaneci dormindo num colchão no chão, ao lado da cama de minha mãe, fiquei a pensar que havia chegado minha hora de escalar o Monte Deus Narayama, originado da lenda japonesa Ubasuteyama, relembrada no cinema pelo filme “A Balada de Narayama”. A metáfora, uma das mais preciosas para o movimento Slow Medicine foi detalhada por Dennis McCullough, em sua obra “My Mother, Your Mother”: acompanhar o processo de envelhecimento e morte dos grandes idosos, é passar pelas oito estações pelas quais passavam os filhos japoneses do século XIX, que devido a pobreza das aldeias e escassez de alimentos para todos, subiam o monte carregando seus pais muito idosos as costas, lá deixados para encontrar com seus ancestrais e morrer, com honra e sentido. Muitos percalços ocorriam na escalada e alguns idosos caiam, ou eram jogados, antes de chegar ao cume. Não vivemos essa viagem com meu pai, falecido com Alzheimer há quase 20 anos. Foi minha mãe que o carregou. 

     Vivi a estação da CRISE (terceira etapa da jornada), sem termos feito adequadamente, eu e meus irmãos, a estação anterior: o COMPROMISSO. Por isso o sentimento extremo de solidão, a sobrecarga de decidir sozinha e apoiar meu irmão mais novo, historicamente o mais frágil na dinâmica familiar, pois teve atraso de desenvolvimento na infância e atualmente tem diagnóstico de Esclerose Múltipla. A primeira estação ESTABILIDADE, foi longa, devido a força de minha mãe, fazendo com que nós seus filhos, próximos dos 60 anos, ainda fizéssemos o papel de filhos, passivos, não de condutores ativos nas providências de suas necessidades não declaradas. Nossa parceria como irmãos, não foi ideal. Novamente nos dividimos em dois grupos com comunicação precária. E fomos nós, os “menores” que tivemos que atravessar a crise. Temos em frente na montanha, a RECUPERAÇÃO que está em curso, o DECLÍNIO já claro, e após o PRELÚDIO DA MORTE, e a MORTE. 

     Fomos criados por nossa mãe para o mundo. E saímos, por diversos e pessoais motivos, para o mundo. Estamos espalhados por quatro estados. O fato de ser filha única, ainda que dividindo com minha sobrinha/irmã esse papel, traz dificuldades adicionais. Trazemos os valores femininos, sentimos culpa ou raiva mais vezes por enxergarmos com detalhes as falhas de cuidado. Pessoalmente foi muito doloroso ver um ser tão delicado, que sempre foi a forte e serena cuidadora de toda a família, atravessar um delirium de tantas horas. Nunca a vimos em desespero, esse talvez seja seu melhor legado. Para tudo, há um caminho. Mas ficam muitas questões. O que sentem os idosos ao delirar? Qual o nível de consciência quanto ao sofrimento? Não sabemos mensurar. Como se sentem alienados dos cuidados do próprio corpo, sem nenhuma chance de opinar ou decidir. Que roupa essa vaidosa idosa escolheria hoje? Aceita que pessoas diferentes a banhem e vistam? O que relembra de sua viagem de retorno a infância e juventude? Gosta de ser chamada de “vozinha” ou “menina”?  

     Esse tem sido meu exercício da fase de RECUPERAÇÃO: ter empatia e tolerar/contornar minhas sequelas de identificação e projeção com minha mãe. Entender que não sou sua médica, sou sua única filha. Ainda que tenha sido sua ouvinte preferencial por toda a vida, e que tenha escutado enquanto secava as louças da família, todas os seus dramas, histórias, perdas, ganhos e convicções da vida adulta, sou uma pessoa diferente. Que a dor dela pode ser outra, diferente da minha. Mas terei sim que lidar com a dor de precisar monitorar os cuidados médicos, de tudo que é prescrito pela Fast Medicine, ou pela medicina descuidada, pela clínica degradada que tivemos a amargura de encontrar, num lugar que deveria ser de cura e conforto: o hospital. Mas que frequentemente é um lugar de sofrimento para os grandes idosos. É difícil ter que crescer aos 60 anos, e sentir-se um pouco velho demais para enfrentar viagens que desagradam os discos vertebrais e seguir escalando o Monte Narayama, com seu idoso as costas. Ainda que sejam vários os filhos, muitas vezes são poucos os que escalam o monte. Nem sempre são os mais fortes. Atrás de nossa caminhada, nessa etapa do ciclo de vida, temos ainda filhos adultos e netos a apoiar. ​

     Participando do movimento Slow Medicine e acompanhando temas de Cuidados Paliativos e Medicina de Família e Comunidade, pensei estar pronta para a partida de minha mãe. Afinal, é seu desejo há algum tempo, já que declarou cumpridas todas as suas missões e ter recebido da vida coisas suficientemente boas. Talvez como filha, ainda não esteja pronta para o final da escalada de Narayama e suas dificuldades.  Preciso lidar com o PRELÚDIO DA MORTE, e preparar a mudança de meu espírito de filha. Em alguns anos, as posições se inverterão e terei eu que aceitar ser cuidada. 

    Pude sentir na pele a importância do papel dos profissionais que deveriam acompanhar a jornada. Há muita conformidade e silêncio entre os profissionais não médicos, acerca do comportamento inadequado de médicos. Ouvi de alguns enfermeiros e cuidadores: “esse médico é assim mesmo”; “um idoso sob seus cuidados delirou até morrer”; “todo mundo sabe que ele é assim”. Não pode ser simplesmente “assim”. Filhos idosos não podem ser abandonados nas decisões sobre seus pais. Famílias precisam ser ouvidas e terem seus papéis definidos com ajuda da equipe que cuida. Filhos médicos não devem ser obrigados a serem médicos de seus pais. É um lugar muito complexo, nebuloso, onde se misturam nossas limitações, culpas, transferências, projeções, ausências, diferenças e traumas com os elementos necessários para decisão médica. Um de meus elementos de culpa pessoal tem sido não ter checado a prescrição de imediato.  Deveria ou não? Esse me pareceu o maior Delirium: aceitarmos um sistema de atenção a saúde com tão pouco respeito ao ser humano, centrado no poder médico e seus interesses. Meu estado tem tradição em reflexão e lutas sociais. Foi com perplexidade que constatei a qualidade de atenção ao idoso numa rede privada de saúde, num contexto de cidade universitária. Cabe investigarmos de que é composto esse Delirium, para que um ciclo de sofrimento, que penso ser de várias famílias, nessa cidade e em outras, não se repita. 

     Dentre os gostos amargos que ficaram como um frio na alma, ficou a sensação de que eu gostaria de ter sido pior educada, ser menos parecida com minha mãe, gentil e contida, para responder adequadamente a um médico assistente que trata o bem estar de uma mãe alheia como uma “bobagem”. Bem, nem sempre somos quem gostaríamos de ser. Quem seria o ser humano tão lacônico atrás da máscara médica? Certamente alguém em sofrimento também. 

     Na ideia do poder das micropolíticas, podemos seguir militando em movimentos de humanização e atenção integral como Slow Medicine, não com intuito de encontrar culpados. As questões que envolvem a relação médico paciente e os fatores que construíram a identidade médica tradicional, são bem mais complexos. Nesse sentido há um longo caminho a percorrer, uma outra Balada de Narayama, até o dia em que tratemos todas as mães como nossas.  

     Em minha viagem ao solo da casa materna, lembrei que vimos o homem pisar na lua. Vale lembrar o sábio mineiro Drummond que diz em seu poema O Homem, As viagens: “Só resta ao homem/ (estará equipado?) / a dificílima dangerosíssima viagem/ De si a si mesmo:/ Pôr o pé no chão/ Do seu coração/ Experimentar/ Colonizar/ Civilizar/ Humanizar/ O homem/ Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas/ A perene, insuspeitada alegria/ De con-viver. 

                  “Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações.”  Clarice Lispector.

Carla e Diva

​​Carla Rosane Ouriques Couto. Médica formada pela UFSM. Especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gestão de Unidades Básicas, Terapia de Família e Educação Médica. Mestre em Psicologia Social. Médica de Família e Comunidade. Perita Médica Federal. Avó de quatro e mãe de três. Desde agosto priorizando ser uma filha suficientemente boa. 

2 Comentários

  1. Tive o prazer de conhecer a Dra. Carla quando palestrou sobre o projeto Slow Medicine. Seu relato é emocionante e convida as lágrimas contifad a desceram pela face. Afinal, senti como se fosse a minha Diva, ou seja, a minha mãe.
    Seu irmão Dr. Márcio, é para mim, mais que irmão!
    Que Deus os mantenha unidos e na fé!

  2. Que maravilha de relato.
    Que pessoa e profissional excepcional.

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