“Faça do tempo um aliado!”
Kurt Kloetzel
Revisitar a história e a obra de Kurt Kloetzel é uma satisfação. Ainda mais para quem teve a oportunidade de tê-lo como professor durante a faculdade de Medicina. Se naquela época era difícil para um aluno ainda no início da faculdade reconhecer a importância de suas ideias, isso fica muito mais fácil agora, quase 30 anos depois, já que suas ideias estavam muito à frente de seu tempo. E fico mais feliz ainda ao ver o quanto nossas ideias hoje se aproximam.
O “alemão” Kurt Kloetzel teve uma riquíssima experiência clínica e de vida. Em parte por ter vivenciado a realidade de locais tão diferentes como Estados Unidos, Inglaterra, África e de várias cidades brasileiras, desde as maiores capitais até as localidades mais distantes. Por outro lado, tinha uma mente curiosa com uma visão mais generalista, talvez alimentada pelo fato de ter sido engenheiro antes de ser médico e por ter se dedicado a outras atividades como a literatura, a fotografia e a jardinagem. Pessoalmente, acredito que uma variedade de interesses verdadeiros termine por enriquecer nossa experiência muito mais do que a especialização precoce e exagerada. Da mesma maneira, Kurt era, a seu modo, um polímata curioso e interessante.
Em sua obra literária, da qual escolhemos dois livros fundamentais, transparece exatamente essa riqueza de experiências e a preocupação com o ser humano. Há também a preocupação com o tempo, mas não como fator de estresse para o médico, e, sim, como aliado no cuidado da pessoa que busca ajuda. Fica evidente que Kurt era adepto de uma Medicina Sem Pressa, mesmo que o rótulo e o movimento ainda não fossem reconhecidos em sua época. Os dois livros foram escritos com um intervalo de mais de 20 anos entre eles, mas em ambos estão presentes as ideias centrais do autor. E, como veremos, são ideias muito atuais para todos os profissionais preocupados em oferecer um cuidado mais humanizado.
Ao percorrer o sumário de seus livros, logo percebemos que não existe a tradicional divisão por órgãos e sistemas, tão comum em livros de Medicina. Como o seu objetivo é a formação de médicos generalistas, os pacientes são tratados como um todo indissolúvel. Nada de “doenças cardiovasculares” ou “doenças neurológicas”. Aqui são tratadas as pessoas, e não as doenças. E esta é uma grande diferença. Kurt criticava a especialização exagerada e via o generalista como o “maestro” da equipe médica. Também era contrário à separação absoluta entre doenças “físicas” e “psíquicas”. Ele via o afastamento entre a Clínica Médica e a Psicologia como obstáculo à formação ideal do médico, pois sabia que as doenças não podem ser puramente físicas ou psíquicas. E é exatamente por isso que, em tempos de hiperespecialização e exageros tecnológicos, a leitura de seus livros pode ser tão revigorante, mesmo tantos anos depois de terem sido escritos. É que o sofrimento humano é algo muito antigo e que não é aplacado em pedaços nem pela frieza das máquinas. Quem sofre necessita tanto de competência técnica como de afeto e empatia. Como diz o autor: “para ser bom médico é preciso saber gostar de gente!”
O primeiro livro, Clínica Médica – Raciocínio e Conduta, foi escrito no final da década de 1970 e trata principalmente do processo diagnóstico. Mas ele começa de uma maneira diferente: apontando a dificuldade em se fazer a distinção exata entre saúde e doença. Além disso, reconhece que em muitas situações não é possível chegar a um diagnóstico exato no primeiro encontro com o paciente e, para isso, lança mão de uma de suas principais ideias: a demora permitida. Ela se refere ao tempo que o médico dispõe para chegar ao diagnóstico definitivo. Conforme o grau de urgência da situação e a evolução natural das doenças, o médico poderia reavaliar o paciente dentro de algumas horas, dias ou semanas, usando o tempo como ferramenta diagnóstica. Mas para que isso seja possível, ele reforça a importância dos cuidados continuados e de uma relação médico-paciente mais próxima e longeva. Outra ideia instigante mostrada no livro é a de uma relação médico-paciente menos paternalista, propondo que o médico ensine o paciente a cuidar de si mesmo a fim de permitir o autocuidado e aumentar a autonomia. O autor também aborda problemas já presentes naquela época e que certamente pioraram desde então, como a medicalização da vida diária, o intervencionismo exagerado e o excesso de exames complementares. Como não achar fascinante que naquela época o autor já alertasse que o hábito de realizar check-ups se tornaria uma das maiores causas de “doença” no século XX?
O segundo livro, Medicina Ambulatorial – Princípios Básicos, é de certa maneira uma versão mais robusta do primeiro e foi publicado em 1999. Várias das ideias anteriores são retomadas, como o conceito de doença, a demora permitida e o problema da medicalização da saúde. Mas há mais espaço para a discussão de aspectos técnicos, como a importância de uma boa anamnese, a técnica do exame físico e o uso adequado dos exames complementares. Há também capítulos sobre relação médico-paciente, saúde coletiva e uma discussão sobre a importância da formação de mais médicos generalistas. Na seção dedicada à terapêutica, o autor discute os objetivos do ato médico, alerta para o envolvimento comercial entre pesquisadores e a indústria farmacêutica e também faz uma avaliação da então recente iniciativa da Medicina Baseada em Evidências (MBE). Em relação a esta última, o autor critica principalmente o fato de a MBE colocar em segundo plano a experiência clínica do médico e os aspectos relacionados ao paciente individual, como as suas preferências pessoais ou os aspectos psicossociais, o que poderia prejudicar o exercício da Medicina como arte. Podemos ver hoje o quanto essa crítica era pertinente. O livro termina com um posfácio muito bonito e com um tom mais intimista. Em uma época onde a relação médico-paciente passa por um processo de crescente “esfriamento”, é muito bom ver Kurt Kloetzel dizer aos médicos que eles deveriam esquecer os conselhos dados na faculdade e não ter medo de se envolver emocionalmente no trabalho. É o antídoto para a frieza emocional da Medicina atual!
Kurt Kloetzel escolheu a “Prece do médico”, escrita por Sir Robert Hutchison, como introdução destes dois livros. E é difícil imaginar algo que traduza melhor as ideias do autor e os princípios da Slow Medicine – Medicina Sem Pressa.
“Que Deus nos proteja:
da relutância em deixar as coisas como estão;
do zelo excessivo pelo que é novo, desprezando o que é antigo;
de colocar o conhecimento acima da sabedoria, a ciência acima da arte e a esperteza acima do bom senso;
de tratar os pacientes como casos; e
de tornar o tratamento mais penoso que a própria doença.”
André Islabão, médico internista, mas também pai, músico, tradutor, compositor, artista e escritor. Autor do livro “Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro”.
Muito bom ler autores cujos textos são atemporais. Este é o caso, certamente. Chamou-me a atenção principalmente algumas das afirmações do “Que Deus nos proteja”
Muita esperança de que em futuro próximo tenhamos mais amor e empatia na prática da medicina e que os médicos, ao contrário do que aprenderam na Faculdade de Medicina, se envolvam sim, emocionalmente com o paciente. Mesmo que só um pouco, esse envolvimento trará muito conforto a quem tanto desse conforto precisa.
Um abraço Doutor. Eu e Flavia somos gratas por tê-lo em nossas vidas.
Forte e carinhoso abraço.
oi André, sou filho do Kurt. gostei muito do texto! só uma observação: meu pai nunca se deixava chamar apenas de alemão. ele corrigia sempre: Judeu-alemão. não queria de forma alguma dar margem para ser confundido com os que viriam a ser os algozes da sua gente.
Caro Tomaz Klotzel, é uma satisfação que tenhas gostado do texto! E aproveito para agradecer a correção muito oportuna que fizeste. Grande abraço!