Por Simone Mancini Castilho:
O desafio de elaborar a resenha de uma obra brilhante como esta traz embutido o risco que corro em ser demasiado objetiva e roubar a alma repleta de sensibilidade e profundidade que a compõe. Vou tentar, então, transmitir não apenas sua crucial importância racional e científica, mas também seu rico conteúdo subjetivo advindo do profundo conhecimento e experiência prática do autor nas artes da medicina e do cinema.
”Humanizando a Medicina: uma metodologia com o cinema” é um livro especialmente cuidadoso, como deve ser o médico diante do paciente e o mestre diante do aluno. Ao longo da leitura nos sentimos respeitados, dada a clareza de sentido que o autor nos proporciona no encadeamento de suas ideias. Trata-se de uma obra humanística por excelência. A proposição que o título do livro já comunica, a de humanizar a medicina, é uma obrigação educacional essencial e de extrema importância ética que vem necessitando atenção urgente em nossos dias. Com esta publicação que reúne sua experiência de vida, três décadas de vida profissional no âmbito da Medicina de Família e a riqueza científica de sua tese de doutorado defendida em 2002 na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o autor nos presenteia com uma metodologia de ensino baseada nos valores do indivíduo que resgata a essência humanista da medicina, contribuindo definitivamente para o processo de humanização do cuidar.
Cabe inicialmente oferecer um panorama da composição do livro. Dr. Pablo González Blasco o divide em quatro partes, sendo que a primeira se constitui num denso corpo teórico que fundamenta a obra, seguido do método de pesquisa que conjuga as artes médica e cinematográfica como recurso de ensino. Os resultados e reflexões frutos dessa experiência educacional compõe a terceira parte e finalmente as conclusões nos lançam o urgente desafio de educarmos com humanismo.
Detendo-me um pouco mais em cada uma destas partes, gostaria de deixar ao leitor uma espécie de “resenha-trailer” que transmita não apenas palavras, mas desperte imagens e sentimentos tal qual o cinema, tão habilmente usado pelo autor como meio afetivo de cativar e transmitir conhecimento.
Na parte I Dr. Pablo nos apresenta a motivação e os encontros que permitiram construir o caminho em direção ao seu objetivo.
Aponta o paciente como o primeiro desses encontros e o quanto é vital para o exercício da arte médica, aprender a escutá-lo. Estimulado por compreender o paciente, o universo onde a doença o insere e que o faz procurar ajuda médica, reflexões e interrogações surgem e se tornam elementos propulsores da pesquisa.
O segundo desses encontros, propiciado pela docência, coloca o médico-professor diante do aluno e da seguinte questão: como entendê-lo a fim de poder ajudar em sua formação médica? Essa atitude profissional acaba permitindo, dentre outros aspectos, identificar o papel ativo do aluno nessa jornada, que se mostra não apenas como motivador, mas também como colaborador na construção do processo.
Nesta proposta de oferecer um humanismo consistente ao paciente e também à formação do estudante, nasce o pesquisador e o terceiro encontro: a Medicina de Família. Esta é um sistema que se compõe de quatro pilares fundamentados, essencialmente, na questão do relacionamento. Nas palavras do autor: “situada no centro, a Medicina de Família integra os quatro quadrantes do conhecimento, o que se traduz em incorporar de modo prático o progresso técnico e evidências científicas, o conhecimento da comunidade para poder aplicá-las, interagir com o contexto vital do paciente para compreendê-lo e, finalmente, um exercício reflexivo de sua atuação”. Entretanto, a Medicina de Família é apenas um dos possíveis caminhos nessa busca de humanização médica que, na verdade, pode e deve acontecer em diversas frentes e atingir todas as suas áreas, como enfatiza Dr. Pablo.
Vamos notando que a intersecção natural nesses encontros já citados é a pessoa, que deve ser compreendida em termos biográfico, fenomenológico e vivencial. Estudar a pessoa é entender o humano em sua totalidade. Como observado pelo autor, “o progresso tecnológico e os avanços científicos vieram, de alguma maneira, distrair o médico das suas verdadeiras raízes…”, num processo que pode ser chamado de desumanização. Sem interpretar essa colocação como desprezo ao progresso científico, percebemos que atualmente tornou-se imprescindível resgatar o compromisso com a humanidade, condição essencial da profissão médica, motivo e razão real de sua missão. Estamos diante do quarto encontro descrito pelo autor, o Humanismo, tema sobre o qual Dr. Pablo possui amplo conhecimento e domínio e cujas valiosas reflexões são leitura obrigatória que não permitem os recortes e reducionismos inerentes à uma resenha.
Lauand, professor de filosofia citado pelo autor, extrai dos antigos a tese de que o homem é um ser que esquece. Faz notar, citando o poeta Píndaro que, desde o Olimpo grego, Zeus recorria às musas e às artes a fim de auxiliar o homem em sua frágil memória das realidades essenciais. As artes e as humanidades podem ser, assim, despertadores da memória de nossa condição essencialmente humana. Com este objetivo e escolhendo a sétima arte como recurso humanístico na educação médica, aqui se apresenta o último encontro do autor nesse caminho: o cinema, que é na verdade um re-encontro, dado que essa arte fez parte de sua vida desde sua infância, como sensivelmente ele nos conta no livro.
A parte II discorre sobre o método utilizado na pesquisa que objetiva avaliar o poder educacional do cinema e seu impacto sobre os alunos. Cuidadosamente recorrendo a ferramentas de avaliação que proporcionem à pesquisa, rigor científico e credibilidade, o autor escolhe o método qualitativo, abordagem que recorre a parâmetros como interpretação e significado, a fim de responder às perguntas que a pesquisa motivou. As respostas, que vale lembrar situam-se no âmbito da observação, são descritas como experiências e catalogadas em dois grupos, apresentadas em pormenores no livro. A partir daí seguem-se as advertências que, como bem salientado pelo autor, não são verdades, dogmas ou receitas, mas podem despertar o desejo por educar de forma afetiva através do uso da arte cinematográfica. Tais advertências situam-se no âmbito prático e dizem respeito a quais filmes utilizar, quais cenas e como apresentar, os comentários facilitadores da reflexão, a importância da discussão e percepção do conhecimento adquirido. Finalmente, com a apuração cuidadosa dos dados, o autor finaliza esta etapa apresentando os temas emergentes e as possibilidades pedagógicas que a metodologia da educação médica com o cinema proporciona.
Na parte III vamos apreciar a síntese das conclusões alcançadas e uma ampliação da discussão a seu respeito. Três temas e capítulos são belamente desenvolvidos, a saber: a missão da universidade na formação do estudante para a profissão médica, a necessidade de se conhecer melhor o universo afetivo e cultural do estudante de medicina para poder educá-lo e finalmente uma reflexão sobre a metodologia cinematográfica propriamente dita, que poderá suscitar trabalhos posteriores que ampliem sua utilização como recurso educacional.
Finalmente, a parte IV expõe as conclusões, que permanecem sendo convites à reflexão. Estas nos desafiam a repensar o papel essencial que o processo de humanização possui dentro da universidade e a necessidade de se desenvolver recursos educacionais que possam nos conduzir a este objetivo.
Acaba sendo natural percebermos de que maneira esta obra se conecta aos princípios da Slow Medicine ao enfatizar a importância do paciente e seus valores, regatar a necessidade da compaixão no processo de cuidar e buscar incansavelmente a humanização dos cuidados à saúde.
Sua leitura é mais do que um prazer, trata-se de uma oportunidade de (re)acender em nós mesmos o que essencialmente nos define como humanos.
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Simone Mancini Castilho: Nasci em São Paulo, em 1965. Formada em medicina na FMUSP em 1990, no quinto ano fui fisgada pela psiquiatria que dirigiu meu olhar para as dores psíquicas. Terminei meu mestrado na área de Transtornos Alimentares em 1999, trabalhei em alguns serviços públicos e privados de saúde mental e dei aula para estudantes de psicologia. Escrevi alguns capítulos de livros, artigos e dois livros: “A Imagem Corporal” e “Psyche, Matter ande Crop Circles”. O tempo de profissão foi me mostrando que a clínica psiquiátrica deixava em mim uma lacuna que preenchi com um curso de formação em psicologia analítica, mergulhando no universo simbólico que alimenta a alma.
Adoro filmes e cinema, de refletir sobre eles e perceber como são belíssimos espelhos psíquicos.
Sempre atendendo em consultório particular, acredito na medicina humana acima de tudo.
Casada há 25 anos, sou mãe de três filhos maravilhosos, gosto de correr, viajar de moto e me surpreender com a tecnologia. Vibro com novidades, paisagens novas, sou das mudanças, do movimento e dos novos ares.