Meio milhão

junho 20, 2021
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Por Ana Coradazzi

“E tudo o que era efêmero se desfez. E só ficastes tu, que é eterno.”

(Cecília Meireles)

            A metade de alguma coisa – qualquer coisa – quase sempre tem um duplo sentido. O sentido está mais nos olhos de quem vê do que na realidade dos fatos. O otimista descreve o copo de água cheio até a metade como meio cheio, o pessimista como meio vazio. É o mesmo princípio do bem-humorado, que ouve o canto do pássaro na janela como um presságio de um ótimo dia, enquanto o mal-humorado o escuta como um barulho irritante que interrompeu seu sono. A realidade é uma só, mas seus significados são infinitos. Mas existem coisas – poucas coisas – que não admitem significados alternativos. Meio milhão de mortos por uma doença evitável é uma delas.

            Quando adotamos os princípios da Slow Medicine em nossa prática clínica, aos poucos nos habituamos a sempre buscar um caminho do meio, uma explicação sensata, uma estratégia justa. Buscamos ser razoáveis, pensar com lucidez, permitir que as emoções aflorem apenas quando elas forem necessárias e benvindas. Com o tempo, a postura profissional contamina a vida pessoal, e passamos a ser mais cautelosos e respeitosos com as pessoas ao nosso redor. Aprendemos a entender outros pontos de vista, julgar menos, tolerar mais. Mas a Slow Medicine também nos torna mais críticos, e nos impele a identificar e a não aceitar as situações intoleráveis. Meio milhão de mortos por uma doença evitável é uma delas.

            O que estamos vivenciando por aqui não é uma catástrofe, porque catástrofes são imprevisíveis e inevitáveis. Nossa metade de milhão poderia ter sido prevista há muitos meses (e foi), numa época em que as mortes poderiam ter sido evitadas (mas não foram). Não aconteceram os movimentos básicos que resultam numa medicina sóbria, respeitosa e justa. Não respeitamos a ciência como a lanterna que deveria nos guiar para fora da escuridão. Não fomos capazes de compreender que os complexos desafios das estratégias preventivas seriam muito menos dolorosos que as perdas inestimáveis que temos sofrido todos os dias. Não conseguimos manter intactos os muros que determinam os limites entre a política, o dinheiro e a saúde das pessoas. Atônitos, nos vimos perdidos entre vozes sensatas que nos advertiam, vozes irresponsáveis que nos “tranquilizavam”, e vozes insanas que nos confundiam. Não fomos sóbrios. Não fomos respeitosos. Não fomos justos. Meio milhão de mortos por uma doença evitável é resultado disso.

            Mas a Slow Medicine não é uma filosofia pautada pelo que poderia ter sido, pelo contrário. Profissionais slow costumam ser incansáveis em suas ações para transformar a realidade da saúde das pessoas. São, antes de tudo, educadores. Durante todos esses meses turbulentos da pandemia, foram publicadas dezenas de textos e outros materiais que buscavam trazer sensatez ao caos, e muitos deles foram capazes de fazer algo mais poderoso do que meramente informar: eles despertaram a crítica, estimularam o raciocínio, impeliram pessoas a pensar antes de se posicionar ou agir. Provocar a crítica é, sem dúvida, um ato revolucionário, e ainda assim nada tem de violento, desrespeitoso ou radical. A conclusão a que cada um chega é menos importante do que o processo de pensar, e é a imensa pluralidade de pensamentos que nos torna mais capazes. O copo pode, sim, estar tanto meio cheio quanto menos vazio. Mas, quando se trata de meio milhão de mortos por uma doença evitável, todos os caminhos minimamente sensatos levam ao mesmo lugar: precisamos parar por aqui. É intolerável, é cruel, e é impensável seguirmos os mesmos caminhos imaginando que teremos resultados diferentes. 

Não estamos falando aqui apenas de grandes mudanças no cenário nacional. Estamos falando, principalmente, dos passos pequenos que cada um de nós é capaz de performar a cada dia: uso das máscaras, evitar aglomerações, manter distanciamento, receber a vacina (e estimular que todos a recebam), evitar a disseminação de notícias falsas. Precisamos falar. Falar sobre o que queremos, o que exigimos, o que desejamos. Mas, acima de tudo, também precisamos ouvir. Precisamos ouvir o silêncio das vozes de meio milhão de nós que não estão aqui para nos dizer o que temos feito de errado. É em respeito a essas vozes amordaçadas que precisamos nos manter sensatos e incansáveis. É, no mínimo, o mais justo a se fazer.


Ana Lucia Coradazzi: Sou médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Concluí a residência médica em Hematologia e Hemoterapia na UNESP e, posteriormente, a residência em Cancerologia Clínica no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú/SP. Foram o imenso desconforto e a sensação de impotência ao lidar com pacientes em sua fase final de vida que me levaram a cursar uma pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da minha vida. Atualmente sou responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. Sou autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio, e editora do blog  www.nofinaldocorredor.com, [1] nos quais escrevo sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos. Moro em Jaú, no interior de São Paulo, com meu marido Fábio e as duas luzes da minha vida, Mariana e Lorena, além da minha coelha de estimação, Julieika. Junto deles, busco o equilíbrio de que tantos dos meus pacientes falam, encontrando na corrida e na prática do yoga a paz que preciso para manter a mente saudável.

5 Comentários

  1. Dra Ana
    Seu texto é precioso, pois revela a verdade que estamos vivendo, a Senhora tem razão quando diz sobre os mais de 500.000 de pessoas falecidas pela Covid, devemos refletir sobre essas perdas.
    Tenho 50 anos de formado em medicina, como sou cardiologista, lido com a morte, frequentemente.

  2. Dra Ana
    Seu texto é precioso, pois revela a verdade que estamos vivendo, a Senhora tem razão quando diz sobre os mais de 500.000 de pessoas falecidas pela Covid, devemos refletir sobre essas perdas.
    Tenho 50 anos de formado em medicina, como sou cardiologista, lido com a morte, frequentemente.

  3. Entendo seu ponto de vista, Marcos, e não espero que meu texto convença as pessoas da minha opinião. Mas o texto não é ruim, ele apenas reflete um ponto de vista diferente do seu, e também reflete a opinião de um número imenso de brasileiros. A Slow Medicine tem como valor essencial a promoção de debates, troca de ideias, e o respeito pela opinião alheia. Agradeço seu comentário.

  4. Não concordo! No Brasil quase sempre procuramos por a culpa em alguém por um insucesso.
    No caso da Covid-19 enfrentamos uma doença desconhecida, com vários desencontros das autoridades sanitárias, inclusive a OMS, um SUS combalido (o eterno problema de Finaciamento), as medidas de bom senso nem sempre aplicáveis e uma mídia que difundia o medo. O texto é ruim e ressoa uma fala politica vigente.

  5. Não concordo! No Brasil quase sempre procuramos por a culpa em alguém por um insucesso.
    No caso da Covid-19 enfrentamos uma doença desconhecida, com vários desencontros das autoridades sanitárias, inclusive a OMS, um SUS combalido (o eterno problema de Finaciamento), as medidas de bom senso nem sempre aplicáveis e uma mídia que difundia o medo. O texto é ruim e ressoa uma fala politica vigente.

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